quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sofrência X resiliência e otras cositas más

Bom dia, queridos :)
Eu escrevi algumas coisas ontem, deixando vir o que tava aparecendo na mente sem filtrar muito, e ainda que não tenha ficado muito isento de emoção (ou seja, ainda que eu estivesse julgando alguns comportamentos), achei que valia o registro dessa forma mesmo.
---
Uma coisa frequente de se ouvir, quando se está numa busca por autoconhecimento, é que a gente dá muito valor pro sofrimento, que não paramos de falar nas sombras, na criança ferida da infância, que nos melindramos com a vida, que entramos nessa de politicamente correto, etc etc.
Isso porque o padrão da sociedade diz o quê? "Esqueça o que dói e vá ser leve & feliz numa festa com tunts-tunts usando seu entorpecimento preferido" ou "ficar falando de sofrimento é coisa de gente fraca, que não aguenta as pauladas da vida! A gente consegue as coisas na garra, no suor, na lágrima e sai vencedor na vida, isso que é história digna e de valor, ruaaaaaurrrr" (rugido de leão pra finalizar a fala)
Releitura pós-moderna dos três macacos sábios é: não quero ouvir, não quero ver, não quero falar sobre o que dói!
Ainda bem que já tem muitos teóricos do pós-modernismo falando pra eu poder dizer junto: tudo isso é vontade de não lidar um fato inevitável da vida - todo mundo sofre. É só ter um ego pra sofrer. É só ter um corpo pra sofrer. É só ser capaz de manifestar emoções que elas não vão ser sempre as mais pacíficas. Negar isso é varrer a sujeira vergonhosa das emoções não publicáveis pra baixo do tapete. As pessoas costumam fazer isso ao confundir leveza com superficialidade ou confundir força com orgulho. Explico melhor os dois casos:
1) Quem se faz de alegre e leve passa pela vida sem aproveitar as oportunidades de crescimento, e ainda muitas vezes fala pra quem está na jornada sincera de autoconhecimento: ah, tem que viver mais leve, sem levar as coisas tão a sério! Essas pessoas não percebem que tem uma grande diferença entre leveza e superficialidade, não concebem que as pessoas podem ser sim profundas sem serem amargas e sérias, que a leveza verdadeira só emerge do encarar a realidade de cada faceta do seu próprio ser e das circunstâncias da vida... se não se encarou a verdade, a suposta leveza é só uma fuga, um esquecimento superficial do que viemos fazer aqui na Terra.
2) Quem se faz de fortão geralmente acaba cheio de dor física por evitar olhar de frente pras suas dores emocionais. Sente que qualquer pessoa que não fez no mínimo o que ela fez pra "vencer na vida" tá reclamando de barriga cheia, julga as dores diferentes das suas como coisa pouca. Sente que falar sobre as dores do caminho é pura reclamação, coisa de gente mimada, que não conheceu a dureza da vida. Fica cego na sua própria história de força e superação dos obstáculos, não abre espaço pro reconhecimento sincero do que lhe causou sofrimento emocional, e não se dá conta das emoções lhe dando rasteira ao longo da vida, na forma de somatizações, doenças, comportamentos compulsivos. Porque tem outro fato inevitável: a dor que é abafada pra não ser sentida exige reconhecimento. Pode esperar, ela vai aparecer. Afinal, ela só estava debaixo do tapete, ela não sumiu.
A sociedade pós-moderna e esse mito do herói bagunçaram muito a forma de encarar a coragem e a força. Parece que toda admissão de fraqueza é sofrência, vitimismo, mimimi, gente que teve tudo e não reconhece seus privilégios e cai na primeira dificuldade bobinha que aparece pelo caminho; chamam de fracos aqueles que admitem, abraçam e transcendem suas dores. Ahhh se essas pessoas soubessem... se elas soubessem quanta força e coragem existe nessa admissão de não se ser tão herói assim! Porque ninguém é. De novo: sofrimento é inerente à condição humana. De que adianta para a árvore ter a madeira dura e rachar com o vendaval? Não: a verdadeira força tá em fluir. A árvore que se dobra ao vento fica praticamente intacta ao fim da tempestade - analogia mais frequente usada sobre resiliência. Jesus falava disso já há tanto tempo. No meio de uma sociedade de "homens fortes", que não levavam desaforo pra casa, disse que bem-aventurados eram os humildes, os mansos. A única forma de vencer uma dor é vivê-la, admiti-la, reconhecê-la, aprender com ela e deixá-la ir embora sem apegos. A única forma de mudar uma característica em si é também reconhecê-a, admiti-la, pra que ela possa ir embora, ser transmutada em algo melhor.
A sociedade - ah a sociedade, manifesta em maior ou menor grau em todos nós que crescemos sob a sua influência - é muito boa em achar respeitáveis e admiráveis os que se desenvolvem intelectualmente, e esquece profundamente da importância da inteligência emocional. Já que a gente não aprende na escola, depende de cada um ir atrás de estabelecer um relacionamento real com suas emoções. Quem busca autoconhecimento vai descobrindo as armadilhas do tipo 1 e do tipo 2 acima, e vai se dando conta da importância de se aprofundar em si mesmo e buscar a humildade de reconhecer o que é "vergonhoso" dentro de si. A inteligência emocional é a que permite aprender a fluir, a que não se enche de autoconfiança por se achar forte, mas que mergulha profundo em si mesmo e encontra sua autoconfiança ao se reconhecer humano e se amar em sua inteireza. A inteligência emocional é a que permite que se saia desse processo todo sendo mais amável consigo, não esperando força e disciplina militar de si, e daí surge a leveza real. É a que permite que se tenha empatia, que permite ouvir o outro relatando suas histórias sem querer cortar o assunto dizendo "mas isso aí não é nada! Difícil foi o que eu passei e blablabla".
Aparte sobre ser um bom ouvinte: NUNCA, NUNCA diminua a dor de outra pessoa. Nunca diga "tá mas era só um cachorro" quando alguém sofre a perda do seu bichinho; nunca diminua a dor emocional de uma pessoa só porque no seu julgamento passar fome é pior. O sofrimento é subjetivo, é uma vivência sem relação de proporcionalidade com a situação objetiva vivida, porque a escala de gravidade das situações é subjetiva. Cada um tem sim o trabalho e a responsabilidade de não se afundar no seu próprio sofrimento, de não se apegar a ele, de perceber o quanto todas as pessoas sofrem e de ressignificar o que foi dolorido, transmutando em aprendizado. Mas essa autorresponsabilidade não lhe dá o direito de botar o dedo em ferida de ninguém com o pretexto de acelerar o processo alheio de ressignificação. Por favor né.
Era isso por hoje... e segue o baile, sempre olhando pra dentro, sempre na tentativa de profundidade e leveza, de humildade, resiliência e autoamor :)

Nenhum comentário:

Postar um comentário