segunda-feira, 29 de maio de 2017

Das coisas que uma mudança traz à tona

Achei a caixinha com os brincos hoje, faz pouco, arrumando o gaveteiro da escrivaninha. Parecia um filme na cabeça me levando de volta pra 2011... eu recém chegada no atendimento ao público no INSS, depois dos meus anos de serviço em Recursos Humanos. Lembro tão bem dos primeiros dias, o impacto do contato com o nosso público tão carente de tanta coisa! Hoje eu sei que só tive uma dimensão um pouco mais precisa do tamanho dos meus privilégios depois de conviver mais de perto com nossos segurados e com os candidatos à assistência social. Até então, eu vivia numa bolha feita de escola particular, universidade federal, bairro legal... tinha aquela noção bem difusa e distante da tal pobreza, da tal ignorância.
E aí tava eu numa agência do INSS, por escolha minha, já que eu quis vir embora de Brasilia. Eu sonhava com os atendimentos com frequência naquelas primeiras semanas. Lembro de alguns dos primeiros segurados, até hoje, com clareza. O senhor que me contou que a vizinha tinha recomendado que ele parasse de tomar banho uma semana antes da perícia, porque não saía benefício pra gente limpa, e que me perguntou se aquilo era verdade; a senhorinha melancólica dizendo que envelhecer era difícil, porque velho começa a pensar nas coisas da vida e aí que a gente vê que a vida não é fácil; a senhora que não falava, ombros curvos, o marido andando na frente dela em direção ao guichê e respondendo às perguntas meio intimidador, como se o atendimento fosse para ele; as pessoas que choravam emocionadas com suas aposentadorias de um salário mínimo; a senhorinha infartada e os brincos.
A senhorinha infartada foi o primeiro caso complexo que adotei, desses que só se desenrolam quando alguém os adota, se alguém os adotar. Mais um daqueles tantos em que um empregador não recolheu INSS devidamente, e em que o ônus da prova recai sobre uma pessoa que fazia tudo certinho. O difícil é que eu não sabia coisa nenhuma de legislação de benefício na época, então pra resolver o pepino eu tinha que sair perguntando pra os colegas, todos ocupadíssimos no atendimento, e não entendia a resposta que eles davam hehe. Talvez por toda a dificuldade técnica daquele momento, junto com a grande vontade de ajudar e a sensação de impotência, aquela história foi tão marcante pra mim.
No dia em que conheci a senhorinha, escrevi depois sobre ela para minhas colegas de Brasília, com quem trabalhava meses antes, pra desopilar o coração. Acho que é o retrato mais fiel do meu sentimento naquele momento:
"Em 18 de outubro de 2011:
(...)
Agora, com que cara um servidor diz pro segurado: o erro foi do seu patrão, mas a senhora com esse coração infartado que vai ter que correr atrás de provar que trabalhou nesse tempo se quiser ter direito a benefício - eu não sei! Eu tava quase chorando enquanto dizia pra ela que o INSS precisa trabalhar com provas para um período sem contribuição. E acho que ela percebeu minha agonia, pois me agradeceu pela atenção e por explicar direitinho pra ela o que precisava fazer. Tão quietinha, nem se indignou, comigo ou com o INSS ou com o empregador, como que esperando que o pato sempre sobrasse pra ela pagar.
Ela foi embora e fiquei pensando em como, meu Deus, as pessoas pobres sofrem nesse mundo e perdem seus direitos, pelo pouco acesso à informação, pela pouca importância que lhes dão, pelas dificuldades burocráticas que emperram a vida de quem faz tudo certo, pelas provas que temos que dar pois a má-fé uns invalida a palavra de todos.
(...)
Li hoje um texto de um servidor de Niterói que me fez lembrar das minhas matutuações dos últimos dias. Acho que só não caio na prostração e indignação que ele sente pois desde que comecei a atender público, sinto que a minha responsabilidade é com cada cidadão que senta aqui. Não é com Ministro, com Presidente, com metas - é com a pessoa que senta na minha frente. Quanto mais a pessoa é privada de sua dignidade e cidadania no dia-a-dia, maior minha responsabilidade. Claro que eu queria que toda a máquina fosse diferente e que todos fossem tratados igualmente - mas, como diz o Drummond, só tenho duas mãos, então antes fazer a minha parte que gastar energia me indignando com uma engrenagem que não vai mudar só pela minha indignação. Teve dias que de tão cansada e de tantos segurados esperando eu não podia fazer mais do que sorrir enquanto atendia voando e adiar um pouco mais o almoço, mas se é isso que dá pra fazer, que seja. Os figurões vão seguir dando carteiraço, tendo prioridades e licenças especiais e tudo mais, mas o meu protesto silente é tratar com toda a deferência que a minha posição permite as pessoas mais desprovidas de direitos que aparecem aqui. Minha consciência fica mais tranquila, as pessoas que eu atendo parecem sair felizes, ou conformadas pelo menos, e eu posso achar uma razão, um objetivo de vida neste trabalho tão igual todo dia, e tão desgastante às vezes.
Eu sempre disse que minha realização reside mais na minha vida pessoal que na profissional, e me parece que eu descobri um jeito de fazer meu trabalho funcionar pra minha realização pessoal... que bom :)
Agora que eu desabafei com vocês, já até passou a vontade de chorar e eu já posso tomar o rumo de casa... salão vazio na agência e buzinas lá fora.
(...)"
Tanto tempo, tantas experiências desde aquele outubro de 2011! O atendimento ao público realmente ganhou meu coração, como eu já suspeitava enquanto escrevia esse email. A história da senhorinha acabou "bem" - marcamos um depoimento com o empregador e com ela, a fim de reconhecer a continuação daquele vínculo de doméstica que estava sem recolhimentos há 7 anos, aprendi a fazer os acertos necessários no cadastro dela, a revisão no benefício negado, e ela teve direito a um salário mínimo mensal de auxílio-doença. Ela ficou tão grata que me trouxe um par de brincos numa caixinha antiga. Pediu que eu ficasse com eles pra lembrar dela. Fiquei muito emocionada, ela também.
E eu não lembrei mais o nome dela, nem sei como ficou a continuidade do benefício - meses depois eu fui da agência de Canoas para a de Osório, e comigo foi a caixinha dos brincos. Nunca os usei, e os tinha sempre por perto em casa, um lembrete pra não perder a essência do que eu queria ser no trabalho. No fim, o lembrar dela a partir dessa essência era um lembrar muito mais forte do que lembrar do nome ou do rosto.
Em alguma mudança que veio depois, a caixinha foi da estante para uma gaveta. E nessa mudança de agora, ela surgiu em meio à limpeza e organização. Que lembrança querida, que viagem no tempo ler novamente esse email, lembrar da Fê assombrada com os primeiros impactos do atendimento ao público no INSS. A gente vai ficando prática, vai aprendendo a trabalhar, ganha um jogo de cintura, aprende a não entrar com tudo no sofrimento do segurado, vai conhecendo as mentirinhas que por vezes nos contam no balcão; tudo isso é o natural. Mas eu peço, nas minhas preces, pra nunca perder a ternura, nunca perder o comprometimento com as pessoas e a fé nelas. Os brincos agora vão pro altar, onde fazemos nossas preces aqui em casa. É bom lembrar por que estamos nos lugares em que a vida nos colocou...
Bjos!